“Becos da Memória”, Conceição Evaristo
Obra aborda discussões sociais com escrita poética
Entre Becos e Memórias, obra de Conceição Evaristo se consagra como um dos textos fundamentais da literatura afrobrasileira
Com abordagem visceral, a escritora Conceição Evaristo tece suas palavras com a combinação excepcional de poesia e prosa. “Becos da Memória”, publicado em 2006, se destaca por abordar a vida nas periferias urbanas brasileiras, no qual o leitor tem acesso a questões profundas na discussão sobre desigualdade social. Dinheiro, amor, morte, sonhos, emoções, sentimentos, família, histórias, tudo isso é exposto na narrativa, deixando o leitor alcançar o íntimo de cada personagem, tornando a leitura um exercício direto de empatia.
Não é toa que seu estilo é conhecido como “escrevivência“, um termo que ela mesma cunhou para descrever uma escrita que não é apenas literária, mas vivida e sentida. A linguagem de Evaristo é simples, mas carregada de significados e de uma sensibilidade singular, que consegue transformar o cotidiano em uma experiência quase mística.
“A ferida dos do lado de cá sempre ardia, doía e sangrava muito”
O livro não segue uma narrativa linear, mas se constrói a partir de fragmentos de memórias e histórias de vida dos moradores de um bairro periférico prestes a ser removido pela especulação imobiliária. A obra se organiza como uma colcha de retalhos, em que cada personagem contribui com sua perspectiva e suas lembranças, formando um mosaico rico e complexo de experiências.
Entre os personagens, encontramos mulheres, homens, crianças, idosos, cada um carregando suas dores, sonhos e resistências. As narrativas se entrelaçam em um fluxo de consciência que ora é individual, ora coletivo, mostrando como as vivências de cada um são parte de um todo maior. Conceição Evaristo explora temas como a memória coletiva, a exclusão social, o racismo, a desigualdade e a resistência. O livro trata do apagamento cultural e físico das comunidades negras, especialmente as que ocupam as favelas e os bairros marginalizados. A iminente remoção da comunidade em Becos da Memória simboliza essa tentativa de apagar histórias e memórias que não se encaixam na narrativa oficial da cidade e do país.
“Numa turma de quarenta e cinco alunos, duas alunas negras, e mesmo assim, tão distantes uma da outra. Fechou a boca novamente, mas o pensamento continuava. Senzala-favela, senzala-favela!“
Muito mais que um livro de memórias, é uma narrativa sobre resistência e pertencimento, uma obra fundamental para compreender a realidade das populações negras e periféricas no Brasil e para estudar as diferentes camadas da sociedade brasileira.
A autora, que ganhou reconhecimento tardio, deve continuar sendo contemplada como uma figura central na literatura brasileira contemporânea. Com uma escrita potente e cheia de humanidade, Evaristo nos convida a revisitar essas memórias esquecidas e a refletir sobre o nosso passado, presente e futuro.
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