Resenha “Laços de Família”, Clarice Lispector
A fragilidade dos sentimentos e as eloquentes relações sociais são pautas nos 13 contos do livro “Laços de Família” de Clarice Lispector, publicado em 1960. Como já é comum no estilo da autora, a maior parte das narrativas se inicia com uma reflexão que gera uma epifania de sentimentos. Isso, por sua vez, leva os personagens e o leitor a uma viagem de emoções.
Como o próprio título do livro indica, os contos abordam relações familiares. No entanto, a autora não segue à risca o tradicional conceito de família. Aqui vemos diferentes tipos de relações familiares e pontos de vista inusitados. Por exemplo, no conto “A Galinha”, acompanhamos a aventura de uma galinha que foge do abate para não virar almoço. Embora pareça bobo ler uma história de uma ave foragida, não é o caso quando escrita por Clarice Lispector. Sua genialidade transforma situações simples em profundas reflexões filosóficas.
Apesar do título ser “Laços de Família”, o leitor não encontrará necessariamente histórias típicas de família. Na verdade, a preciosidade das leituras de Clarice está em mostrar como o cotidiano é repleto de coisas potentes. Muitas vezes, não percebemos isso por estarmos acomodados com a rotina. Portanto, ler Clarice é mais do que uma experiência de leitura comum; é um exercício de conhecimento interior e visão de mundo.
“Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua. […] Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante do crime que eu nunca tinha cometido. A possibilidade de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer”
Por exemplo, no conto “O Amor”, acompanhamos uma dona de casa que enfrenta sentimentos aflitos quando está longe dos filhos, marido e afazeres domésticos. Ela passa por uma epifania ao se deparar com um cego em um bonde. Embora pareça aleatório um homem cego causar tamanha comoção, ele representa o “mundo de fora”. Para uma dona de casa tão absorvida por tarefas domésticas, esse mundo parece não existir mais.
Em um trecho do conto, lemos: “Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia.” Esse trecho exemplifica o apagamento que muitas mulheres sentem após se casarem e se tornarem mães, como se sua vida anterior fosse apagada e reescrita. Ana já não era apenas Ana; sua individualidade competia com os papéis de mãe e esposa, sempre perdendo.
“E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor”
Clarice Lispector escreve de forma introspectiva, mergulhando no íntimo dos seus personagens e, ao mesmo tempo, abrindo espaço para que os leitores também se aprofundem em suas próprias profundezas. O banal vira extraordinário e percebemos quão frágeis, e também preciosos, são os laços que nos unem.
Portanto, entre tantas palavras tão bem esculpidas, “Laços de Família” é uma experiência densa e profundamente humana.
Publicar comentário